VIII - Num Meio-Dia
de Fim de Primavera
Num meio-dia de fim
de primavera
Tive um sonho como
uma fotografia.
Vi Jesus Cristo
descer à terra.
Veio pela encosta de
um monte
Tornado outra vez
menino,
A correr e a rolar-se
pela erva
E a arrancar flores
para as deitar fora
E a rir de modo a
ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para
fingir
De segunda pessoa da
Trindade.
No céu era tudo
falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores
e pedras.
No céu tinha que
estar sempre sério
E de vez em quando de
se tornar outra vez homem
E subir para a cruz,
e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à
roda de espinhos
E os pés espetados
por um prego com cabeça,
E até com um trapo à
roda da cintura
Como os pretos nas
ilustrações.
Nem sequer o deixavam
ter pai e mãe
Como as outras
crianças.
O seu pai era duas
pessoas
Um velho chamado
José, que era carpinteiro,
E que não era pai
dele;
E o outro pai era uma
pomba estúpida,
A única pomba feia do
mundo
Porque não era do
mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha
amado antes de o ter.
Não era mulher: era
uma mala
Em que ele tinha
vindo do céu.
E queriam que ele,
que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai
para amar com respeito,
Pregasse a bondade e
a justiça!
Um dia que Deus
estava a dormir
E o Espírito Santo
andava a voar,
Ele foi à caixa dos
milagres e roubou três.
Com o primeiro fez
que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo
criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou
um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na
cruz que há no céu
E serve de modelo às
outras.
Depois fugiu para o
sol
E desceu pelo
primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha
aldeia comigo.
É uma criança bonita
de riso e natural.
Limpa o nariz ao
braço direito,
Chapinha nas poças de
água,
Colhe as flores e
gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos
burros,
Rouba a fruta dos
pomares
E foge a chorar e a
gritar dos cães.
E, porque sabe que
elas não gostam
E que toda a gente
acha graça,
Corre atrás das
raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos
pela estradas
com as bilhas às
cabeças
E levanta-lhes as
saias.
A mim ensinou-me
tudo.
Ensinou-me a olhar
para as cousas.
Aponta-me todas as
cousas que há nas flores.
Mostra-me como as
pedras são engraçadas
Quando a gente as tem
na mão
E olha devagar para
elas.
Diz-me muito mal de
Deus.
Diz que ele é um
velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no
chão
E a dizer
indecências.
A Virgem Maria leva
as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo
coça-se com o bico
E empoleira-se nas
cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é
estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não
percebe nada
Das coisas que criou —
"Se é que ele as
criou, do que duvido" —
"Ele diz, por
exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não
cantam nada.
Se cantassem seriam
cantores.
Os seres existem e
mais nada,
E por isso se chamam
seres."
E depois, cansados de
dizer mal de Deus,
O Menino Jesus
adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo
para casa.
.............................................................................
Ele mora comigo na
minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna
Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é
natural,
Ele é o divino que
sorri e que brinca.
E por isso é que eu
sei com toda a certeza
Que ele é o Menino
Jesus verdadeiro.
E a criança tão
humana que é divina
É esta minha
quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda
sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo
olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som,
seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que
habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que
existe
E assim vamos os três
pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e
rindo
E gozando o nosso
segredo comum
Que é o de saber por
toda a parte
Que não há mistério
no mundo
E que tudo vale a
pena.
A Criança Eterna
acompanha-me sempre.
A direção do meu
olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento
alegremente a todos os sons
São as cócegas que
ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um
com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um
no outro,
Mas vivemos juntos e
dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e
a esquerda.
Ao anoitecer
brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de
casa,
Graves como convém a
um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um
universo
E fosse por isso um
grande perigo para ela
Deixá-la cair no
chão.
Depois eu conto-lhe
histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque
tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que
não são reis,
E tem pena de ouvir
falar das guerras,
E dos comércios, e
dos navios
Que ficam fumo no ar
dos altos-mares.
Porque ele sabe que
tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao
florescer
E que anda com a luz
do sol
A variar os montes e
os vales,
E a fazer doer nos
olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e
eu deito-o.
Levo-o ao colo para
dentro de casa
E deito-o, despindo-o
lentamente
E como seguindo um
ritual muito limpo
E todo materno até
ele estar nu.
Ele dorme dentro da
minha alma
E às vezes acorda de
noite
E brinca com os meus
sonhos.
Vira uns de pernas
para o ar,
Põe uns em cima dos
outros
E bate as palmas
sozinho
Sorrindo para o meu
sono.
......................................................................
Quando eu morrer,
filhinho,
Seja eu a criança, o
mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro
da tua casa.
Despe o meu ser
cansado e humano
E deita-me na tua
cama.
E conta-me histórias,
caso eu acorde,
Para eu tornar a
adormecer.
E dá-me sonhos teus
para eu brincar
Até que nasça
qualquer dia
Que tu sabes qual é.
.....................................................................
Esta é a história do
meu Menino Jesus.
Por que razão que se
perceba
Não há de ser ela
mais verdadeira
Que tudo quanto os
filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
Alberto Caeiro (in Guardador de Rebanhos)
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