terça-feira, 2 de outubro de 2012

Hoje

Quando éramos pequenos, o nosso dia de aniversário era especial. Andávamos 364 dias à espera daquele dia e quando ele chegava, a alegria contagiava-nos, fazíamos coisas diferentes, vestíamos uma roupinha nova, ninguém nos podia chatear, enfim, era como se naquele dia fossemos obrigados a ser felizes.
Com o tempo desobrigamo-nos a ser felizes neste dia e os 365 dias passam a ser iguais. Sim, os 365 dias, porque também as outras datas em que obrigatoriamente estaríamos felizes, acabam por ter o mesmo destino que o dia do nosso aniversário.
Hoje, relembro, essencialmente, aquele período, supostamente, inocente em que nos juntávamos lá em casa e fazíamos do quarto uma discoteca com slows incluídos. Lembro-me de o pôr debaixo do braço e dançar muito agarradinha a ele. Era o meu primeiro amor e este dia marcava sempre o recomeço ou a consumação do nosso namoro. Depois existiam os bolos, as sandes, os sumos, o champanhe aberto por nós, mas bebido apenas pelos adultos.
Esse tempo ficou lá atrás.
Agora obrigamo-nos a ter um jantar fora ou melhor, mas mais pelos outros do que por nós e somente para que o dia não seja mesmo igual a todos os outros. Se antes queríamos ter mais um ano e alegravamo-nos por isso, hoje irrita-nos o facto de termos mais um.

Afinal, esta fase adulta-pré-velhice incomoda.









Aniversário
Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais       copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


15/10/1929

1 comentário:

lapsus disse...

PARABÉNS A VOCÊ :) NESTA DATA QUERIDA:) MUITAS FE...LIIII...CI...DADES :) MUITOS ANOS DE VIDA... :) :)

Curiosa palavra esta: como se fosse a mistura de feliz com cidades... É isso que te desejo. Que sejas feliz... no maior número de cidades, mesmo aquelas que estão dentro da nossa casa, do nosso cantinho, da nossa cabeça. Cidades e cidades felizes.

Beijooooooocaaaasssss

lapsus